O mito da democracia como expressão da liberdade

Tal como na cultura europeia e ocidental, a conceção de democracia está eivada de mitos e narrativas ficcionais.

Há quem pense que a Grécia foi o berço da democracia, mas na verdade, a democracia “ateniense”, ou até mesmo a “grega”,foi apenas o berço da democracia ocidental, ou melhor, o berço do Ocidente ou da sua construção democrática (Canfora, “A Democracia: História de uma Ideologia”, 2007).

Primeiro, porque há registos de Heródoto, nas suas “Histórias”, no qual afirma claramente que antes de Clístenes a democracia política tinha sido inventada na Pérsia.

Segundo, porque, em Atenas se combateu, de facto, a tirania (governo de um homem, qual Creonte, independentemente de ser bom ou mau), mas institui-se um regime de governação a favor do “povo”, i.e., a“maioria dos cidadãos”, pois não confundiam povo com multidão, embora, em bom rigor, o regime se fundasse na escravidão (dos 5 milhões habitantes estimados na Grécia Antiga, 4 milhões eram escravos). Por outro lado, também com honesto rigor, não existe nenhum texto ateniense que elogie a implantação da democracia, tal como a conhecemos.

Nem o famoso Discurso de Péricles, relatado por Tucídides na sua “História da Guerra do Peloponeso”, escapa a esta afirmação.Da alegada frase que o grande general (“estratego”) da Grécia Antiga terá dito:“Porque o Estado, entre nós, é administrado no interesse do povo e não de uma minoria” (escrito de Tucídides), importa sublinhar que “povo” aqui não se confunde com a noção e âmbito atual de cidadania, antes com pessoas que possuem direitos políticos, os quais não eram nem universais, nem iguais para todos, excluindo escravos, mulheres, estrangeiros (metecos), entre outros.

Com efeito, até entre os maiores mestres da filosofia grega eram defensores da democracia. Platão e Sócrates foram contra a democracia. Aristóteles dizia que o princípio da maioria não tinha uma relação sustentável com a democracia, pois também na oligarquia vigorava o critério da maioria. O que os unia era o medo da anarquia de serem governados pelos ignorantes, pelos pobres (e também pelos ricos), ou pela multidão, palavra que, depois de Marx, ficou universalmente conhecida por as massas. Aliás, dois séculos mais tarde, Hannah Arendt, no seu livro “As Origens do Totalitarismo”, faria a mesma distinção entre povo e multidão, com base no critério da representação política, o primeiro, de índole coletivista, quer que seja eficaz, o segundo, de índole individualista, odeia-a. Foram estes medos que os levaram a duvidarem da forma democrática de governo, pois, poderia o poder cair nas ruas e assim, na anarquia (ausência de poder) e na anomia (ausência da lei), e a preferirem uma espécie de aristocratização da democracia, dos melhores e mais sábios, ou seja, um governo da minoria, liderado pelos “senhores comuns”.

Tal tinha fundamento na própria Bíblia, no NovoTestamento, que contém um trecho onde justifica a manutenção desta “servidão”,aceitando a escravatura, na Epístola de S. Paulo aos Efésios (6, 5-9):

«Escravos, obedecei aos vossos senhores nesta vida, com temor e tremor, com simplicidade, como a Cristo. Servi de bom grado, como se servísseis ao Senhor e não a homens. Vós sabeis que cada um, escravo ou livre, receberá do Senhor o Bem que tiver feito. Senhores, tratai os vossos servos do mesmo modo. Deixai de lado as ameaças: bem sabeis que tanto eles como vós tendes o mesmo Senhor, que está no Céu e não faz distinção de pessoas».

A mesma conceção é reiterada na Epístola aos Gálatas e na primeira Epístola aos Coríntios.

Roma, tanto na versão República como de Império, deu-nos as liberdades republicanas, que contribuíram para as acrescentar aos direitos políticos (como o sufrágio), sustentados pelos atenienses, fazendo ambos parte da formação do Ocidente.

Somente com o liberalismo e constitucionalismo inglês, norte-americano e francês se evoluiu no conceito da democracia, conceito adormecido até ao século XX, mas ainda não inteiramente sinónimo de liberdade ou de igualdade, pois os dois primeiros assentaram na escravatura e desigualdade até ao século XX. A Revolução Francesa foi a primeira a defender a liberdade como direito inalienável de todo o ser humano, por oposição aos dois países anglófonos. Situação que tinha apoio em grandes políticos e filósofos.

Churchill considerava o termo democracia como algo pejorativo, tal como o comunismo.

Kant, em 1795, escreveu na “A Paz Perpétua” que «A democracia é a via que conduz ao despotismo».

Porém, nem todos os “liberais” franceses elevavam a democracia à liberdade ou igualdade. Tocqueville, num discurso parlamentar de1841, escreveu: “Tenho pelas instituições democráticas um gosto mental, mas sou aristocrata por instinto, isto é, desprezo e receio a multidão. Amo com paixão a liberdade, a legalidade, o respeito pelos direitos, mas não a democracia.Isto do fundo da alma. Odeio a demagogia. A liberdade é a primeira das minhas paixões. Esta é verdade.”

Já no século XX, e em diante, a democracia ocidental - ancorada em conceitos e categorias, direitos e liberdades, moldados entre a “democracia ateniense” e as democracias capitalistas – evidencia diversos graus de definição e compreensão, não sendo sinónimo de liberdade ou de igualdade, abrangendo democracias liberais e iliberais, desde democracias semidirectas, como a suíça, às personalizadas, como a russa, ou às orgânicas, como a chinesa e a singapurense.

Importa, pois, reconhecer o incipiente, arrastado e instável progresso da democracia, raramente colado à liberdade ou igualdade.Com realismo, democracia não é sinónimo de liberdade, nem esta é oposto de autoridade, desde esta se fundamente naquelas, na maioria democrática e nas liberdades fundamentais, e no respeito pelas minorias e pluralismo político.Paradoxalmente, sabemos como a democracia pode ser instrumento de acesso ao poder de partidos e ideologias iliberais, evidenciada na forma eleitoral de ascensão de Hitler e do nazismo e de queda dos sociais-democratas em Itália que culminou no regime fascista, ambos no século passado. Todavia, também uma cidadania inclusiva, ativa e participativa, não será suficiente, sobretudo se meramente discursiva, caso contrário, a democracia da União Europeia seria quase perfeita além dos livros.

Não caiamos no erro de tomar democracia e liberdade como unas, tal só serve a ascensão de populistas e demagogos. O principal consenso de um democrata liberal é atingir a convicção intrínseca de que nenhuma das duas pode, em caso algum, ser comprimida ao ponto de anular o sentido e valor da realização da outra, os quais são determinados e fundados nos princípios estruturantes do constitucionalismo contemporâneo liberal europeu, onde, precisamente, a Constituição Portuguesa se inscreve.

 

Descritores: democracia, liberdade, Grécia, filósofos, cidadania, igualdade

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